28/09/16

"Tungsténio" - Marcello Quintanilha

TungsténioTungsténio by Marcello Quintanilha

Marcello Quintanilha nasceu no Brasil, mas mora em Barcelona. Em 2002 recebeu - e aceitou - um convite para participar numa coleção de álbuns que retratassem as principais cidades brasileiras. A si, coube-lhe Salvador, a cidade onde decorre a ação desta HQ.
No prefácio, Quintanilha explica que o tungsténio «é o metal com o ponto de fusão mais alto que se conhece», como quem admite ser a natureza inquebrável das vidas comuns o tema central deste livro, em que se sucedem as situações e peripécias que colocam à prova «a capacidade dos personagens de forçar a dureza do metal do dia a dia a ponto de rompê-lo». No choque com a dita «dureza do metal», há quem saia maltratado, há quem maltrate, há quem sobreviva.

À sombra do Forte de Nossa Senhora de Monte Serrat, em Salvador (Bahia), dois homens decidem fazer uma pescaria com explosivos e desencadeiam uma cascata de acontecimentos que acabarão por juntar as personagens centrais do livro: um traficante de canábis que passa informações à polícia; um sargento aposentado, com nostalgia dos seus tempos de atividade militar; um polícia de grande coragem, sobretudo debaixo de fogo; e a sua amante desiludida, em vias de concretizar uma separação que nunca passou de ameaça.

Além de ser um enérgico retrato da violência urbana, Tungsténio consegue captar fielmente o falar das ruas, cheio de corruptelas e solecismos. As pranchas são dinâmicas, com espaço para a interioridade das personagens (sobretudo a de Keira, a amante). O traço é limpo e expressivo, ao serviço de histórias que se interpenetram, numa montagem paralela a fazer lembrar o cinema. A estruturação a nível do argumento permite uma narrativa coesa, apesar da ação ter lugar simultaneamente em localizações distintas.

Em termos visuais, realço o desenho realista, com pormenores expressivos e individualizados em algumas personagens, mas pleno de pequenos traços estilísticos que aumentam essa aproximação ao real (a atenção para com o “peso” real dos corpos humanos sob a forma de suor, lágrimas, a focalização em gestos isolados e pessoais, os diálogos orais, urgentes, verídicos, e as onomatopeias)
O traço de Marcello Quintanilha revela-se sobretudo nas cenas de ação e no movimento dos corpos, mas é na expressão dos rostos e no retrato da cidade que o autor se agiganta.
O esgar da raiva ou do desespero das personagens confunde-se com o riso e o riso transforma-se em dor. A representação das emoções permanece ambígua, sempre contra a paisagem da praia, das ruas apertadas, das estradas desertas ou inchadas de trânsito.
O autor insiste em colocar as personagens num lugar, num espaço real. Não sendo uma BD “documental”, alimenta-se da realidade brasileira. Há alusões à ditadura militar, à pobreza e à desigualdade social, e a violência estala em quase todas as páginas.

Depois de ler “Talco de Vidro” e “Tungsténio”, começo a olhar para M.Quintanilha como um caso sério de HQ made in Brasil.

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18/09/16

"Geração A" - Douglas Coupland


Geração AMy rating: 4 of 5 stars

Oitavo livro que leio de D. Coupland (o escritor de quem mais obras li). Os dois primeiros romances, “Geração X” e “Inforscravos”, fazem parte, ainda hoje, da lista “os livros que mais gozo me deram a ler”.

As suas estórias são rocambolescas e muito, muito atuais. Nelas, abundam figuras que se arrastam num mundo hi-tech de ”fast-food" e Internet e Ikea e Lego e celebridades vácuas; e consumo, consumo e mais consumo (com algum existencialismo); e marcas e mais marcas; e coisas, e objetos, e mais marcas de coisas e de objetos.
Tudo isto pode parecer gratuito ou uma mera provocação pós-moderna, mas a verdade é que Coupland retrata a sociedade materialista e consumista americana de um modo que, de início, me encantou e que, vinte anos depois, ainda continua a fazer nascer finos sorrisos de prazer-na-leitura.

Em ”Geração A", Coupland apresenta-nos um mundo distópico, onde as abelhas foram extintas, com o consequente “crise de polinização” que trouxe inúmeros problemas alimentares (a fruta, por exemplo, é um bem raro…). Logo no início da obra, cinco personagens são picadas em partes diferentes do planeta (EUA, Canadá, Sri Lanka, França e Nova Zelândia). Na sequência, são levados para um Centro de Pesquisas, a fim de serem cobaia de testes para determinar a causa das picadelas.
Há uma nova droga, o Solon, que cria, em quem a consome, uma vontade de estar só, uma espécie de disposição antissocial… as picadelas tornam-se, afinal, no primeiro passo para o fim do Solon (solidão/individualismo vs sociabilidade). É uma imagem, um símbolo, para um mundo que o autor considera estar a desagregar-se.
"Geração A" talvez queira ser uma chamada de atenção - o mundo está à beira da desagração e há pessoas mesmo ao nosso lado, enquanto nos isolamos em territórios e espaços quer digitais quer analógicos.

Tenho para mim que D. Coupland é uma espécie de mix de pop art + beat generation. Não sei bem explicar porquê.

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